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Àbíkú

03/04/2012 20:10

Àbíkú

O PRAZER DE NASCER E MORRER  

O ideal Yorubá do renascimento é as vezes tão extremamente exagerado, que alguns espíritos nascem e em seguida morrem somente pelo prazer de rapidamente poder nascer de novo. São os chamados abikuns (literalmente, nascido para morrer), que explicam na cultora Yorubá tradicional as elevadas taxas de mortalidade infantil. Em geral, um abikun renasce seguidamente do útero da mesma mãe.

Quando uma criança é identificada como sendo um abikun, muitos são os ritos ministrados para impedir sua morte prematura. Assim como a sociedade Egungum cultua os antepassados masculinos do grupo (Babayemi, 1980), outra sociedade de mascarados, a sociedade Gueledé, celebram as mães ancestrais, às quais cabe também zelar pela saúde e vida das crianças, inclusive os abikuns (Lawal, 1996).

Os festivais Gueledé não sobreviveram no Brasil (segundo o Professor Agenor Miranda Rocha, em conseqüência de disputas, no começo do século, entre lideranças do candomblé da Casa Branca do Engenho Velho, que provocaram a cisão do grupo e fundação do Axé Opô Afonjá por Mãe Aninha Obá Bií).

Também não sobreviveu integralmente a idéia de abikun e o termo passou a designar, em muitos candomblés, as pessoas que são consideradas como tendo sido nascido já iniciadas para o Orixá a que pertencem, não devendo, assim, ser raspadas, como devem ser os demais que se iniciam na religião.

A maneira fragmentária como a religião Africana foi se reconstituindo no Brasil implicou, claramente, em acentuadas mudanças nos conceitos de vida e morte, mudanças que vão afetar o sentido de certas práticas rituais, especialmente quando sofrem a concorrência de ritos católicos e de concepções ensinada pela Igreja.

A tradição cristã ensina que o ser humano é composto de corpo material e espírito indivisível, a alma. Na concepção Yorubá, existe também a idéia do corpo material, que eles chamam de ara, o qual com a morte decompõe-se e é reintegrado à natureza, mas, em contrapartida, a parte espiritual é formada de várias unidades reunidas, cada uma com existência própria. As unidades principais da parte espiritual são:

1) o sopro vital ou emi;

2) a personalidade-destino ou ori;

3) identidade sobrenatural ou identidade de origem que liga a pessoa à natureza, ou seja, o Orixá pessoal;

4) o espírito propriamente dito ou Egum.

Cada parte destas precisa ser integrada no todo que forma a pessoa durante a vida, tendo cada uma delas um destino diferente após a morte. O emi, sopro vital que vem de Olorun e que está representado pela respiração, abandona na hora da morte o corpo material, fabricado por Oxalá, sendo reincorporado à massa coletiva que contém o princípio genérico e inesgotável da vida, força vital cósmica do Deus-primordial Olodumaré-Olorun. O emi nunca se perde e é constantemente reutilizado. O ori, que nós chamamos de cabeça e que contém a individualidade e o destino, desaparece com a morte, pois é único e pessoal, de modo que ninguém herda o destino de outro. Cada vida será diferente, mesmo com a reencarnação.

O Orixá individual, que define a origem mítica de cada pessoa, suas potencialidades e tabus, origem que não é a mesma para todos, como ocorre na tradição judaico-cristã (segundo a qual todos vêm de um único e mesmo Deus-pai ), retorna com a morte ao Orixá geral, do qual é uma parte infinitésima.

Finalmente, o egum, que é a própria memória do vivo em sua passagem pelo Àiyê, que representa a plena identidade e a ligação social, biográfica e concreta com a comunidade, vai para o Orun, podendo daí retornar, renascendo no seio da própria família biológica.

Quando se trata de alguém ilustre, os vivos podem cultora sua memória, que pode ser invocada através de um altar ou assentamento preparado para o egum, o espírito do morto, como se faz com os Orixás e outras entidades espirituais. Sacrifícios votivos são oferecidos ao egum que integra a linhagem dos ancestrais da família ou da comunidade mais ampla. Representam as raízes daquele grupo e são a base da identidade coletiva.

Na África tradicional, dias depois do nascimento da criança iorubá, realiza-se a cerimônia de dar o nome, denominada ekomojádê, quando o babalawô consulta o oráculo para desvendar a origem da criança. É quando se sabe, por exemplo, que se  trata de um ente querido renascido.

 Os nomes Iorubás sempre designam a origem mítica da pessoa, que pode referir-se ao seu Orixá pessoal, geralmente o Orixá da família, determinado patrilinearmente, ou à condição em que se deu o nascimento, tipo de gestação e parto, sua posição na seqüência dos irmãos, quando se trata, por exemplo daquele que nasce depois de gêmeos, a própria condição de abikun e assim por diante.

A partir do momento do nome, desencadeia-se uma sucessão de ritos de passagem associados não só aos papéis sociais, como a entrada na idade adulta e o casamento, mas também à própria construção da pessoa, que se dá através da integração, em diferentes momentos da vida, dos múltiplos componentes do espírito. Com a morte, estes ritos são refeitos, agora com a intenção de liberar essas unidades espirituais, de modo que cada uma deles chegue ao destino certo, restituindo-se, assim, o equilíbrio rompido com a morte.

No Brasil, nas comunidades de candomblé e demais denominações religiosas afro-brasileiras que seguem mais de perto a tradição herdada da África, a morte de um iniciado implica a realização de ritos funerários. O rito fúnebre é denominado axexê na nação Kètu, tambor de choro nas nações mina-jeje e mina-nagô, sirrum na nação jeje-mahim e no batuque, ntambi ou mukundu na nação angola, tendo como principais fins os seguintes:

Desfazer o assentamento do ori, que é fixado e cultuado na cerimônia do bori, cerimônia que precede o culto do próprio Orixá pessoal;

Desfazer os vínculos com o Orixá pessoal para   o  qual aquele homem ou mulher foi iniciado, o que  significa  também  desfazer  os  vínculos com toda a comunidade do terreiro, incluindo os ascendentes   (Yalorixá e Babalorixás), os  descendentes (filhos-de-santo) e parentes-de-santo colaterais;

 Despachar o egum do morto, para que ele deixe o Àiyê e vá para o Orun. Como cada iniciado passa por ritos e etapas iniciáticas ao longo de toda a vida, os ritos funerários serão tão mais complexos quanto mais tempo de iniciação o morto tiver, ou seja, quanto mais vínculos com o Àiyé tiverem que ser cortado (Santos, 1976).

Mesmo o vínculo com o Orixá, divindade que faz parte do Orun, representa uma ligação com o Àiyé, pois o assentamento do Orixá é material e existe no Àiyé, como representação de sua existência no Orun, ou mundo paralelo. Mesmo um abiã, o postulante que está começando sua vida no terreiro e que já fez o seu bori, tem laços a cortar, pois seu assento de ori precisa ser despachado, evidentemente numa cerimônia mais simples.

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