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De Africano a Afro-Brasileiro

 

De Africano a Afro-Brasileiro

 

 

Entre os anos de 1525 e 1851, mais de cinco milhões de africanos foram trazidos para o Brasil na condição de escravos, não estando incluídos neste número, que é uma aproximação, aqueles que morreram ainda em solo africano, vitimados pela violência da caça escravista, nem os que pereceram na travessia oceânica.

Os escravos provinham de onde fosse mais fácil capturá-los e mais rendoso embarcá-los. O infame comércio dependia, na África, das próprias condições locais das populações nativas, regulado por suas guerras, ódios intertribais, domínios imperiais (Johnson, 1921). O tráfico era rendosa atividade econômica para portugueses, brasileiros e traficantes de outras nações, mas era igualmente vantajoso para os africanos que caçavam e vendiam africanos.

 

Ao longo de mais de três séculos de tráfico, enquanto a própria nação brasileira se formava e tomava corpo, os africanos foram trazidos das mais diferentes partes do continente africano abaixo do Saara (Conrad, 1985: 34-43). Não se tratava de um povo, mas de uma multiplicidade de etnias, nações, línguas, culturas. No Brasil foram sendo introduzidos nas diferentes capitanias e províncias, num fluxo que corresponde ponto por ponto à própria história da economia brasileira.

 

A prosperidade econômica estava relacionada a uma intensificação da demanda de mão-de-obra escrava: não havia a possibilidade do progresso material sem que mais negros fossem importados, pois o trabalho era essencialmente africano e afro-descendente.

A África já praticava o cativeiro muito antes da descoberta da América e a Europa já importava escravos africanos antes da descoberta do Novo Mundo, mas foi o tráfico para cá do Atlântico que transformou a caça de escravo na mais rendosa atividade para o próprio africano, num mercado de escambo que dava a ele cobiçadas mercadorias do Novo Mundo, especialmente o tabaco.

A origem dos africanos trazidos para o Brasil dependia também, e especialmente, de acordos e tratados realizados entre Portugal, Brasil e potências europeus, sobretudo a Inglaterra. A África, também como celeiro de mão-de-obra, era evidentemente loteada entre os países coloniais-escravistas, e a origem do tráfico mudou muito, em três séculos, em função dos cambiantes interesses das potências envolvidas, suas disputas, guerras e tratados (Oliveira, 1999).

 

GRUPOS ÉTINICOS

 

Os povos da África Negra são classificados, grosso modo, em dois grandes grupos lingüísticos: sudaneses e bantus.

 

 SUDANESES

Constituem os povos situados nas regiões que hoje vão da Etiópia ao Chade e do sul do Egito a Uganda mais o norte da Tanzânia. Ao norte representam a subdivisão do grupo sudanês oriental (que compreende os núbios, nilóticos e bário) e abaixo o grupo sudanês central, formado por inúmeros grupos lingüísticos e culturais que compuseram diversas etnias que abasteceram de escravos o Brasil, sobretudo os localizados na região do Golfo da Guiné e que, no Brasil, conhecemos pelos nomes genéricos de nagôs ou iorubás (mas que compreendem vários povos de língua e cultura iorubá, entre os quais os Oyó, ijexá, Ketu, Ijebu, egbá, Ifé, oxogbô etc.), os fon-jejes (que agregam os fon-jejes-daomenaos e os mahi, entre outros), os haussás, famosos, mesmo na Bahia, por sua civilização islamizada, mais outros grupos que tiveram importância menor na formação de nossa cultura, como os grúncis, tapas, mandingos, fântis, achântis e outros não significativos para nossa história. Freqüentemente tais grupos foram chamados simplesmente de minas.

 

Bantus

Povos da África Meridional estão representados por povos que falam entre 700 e duas mil línguas e dialetos aparentados, estendendo-se para o sul, logo abaixo dos limites sudaneses, compreendendo as terras que vão do Atlântico ao Índico até o cabo da Boa Esperança. O termo "banto" foi criado em 1862 pelo filólogo alemão Willelm Bleek e significa "o povo", não existindo propriamente uma unidade banta na África. As principais línguas deste tronco são: o ajauá, falado em terras contidas hoje em Moçambique, Malauí e Zaimbábue; o ganguela, na fronteira leste de Angola e oeste de Zâmbia; cuanhama, no Sudoeste africano contido em Angola e Namíbia; o iaco-cuango-casai, no Zaire; macua, em Moçambique; quicongo, no Congo, Cabinda e Angola; quimbundo, em Angola (acima do rio Cuanza e ao redor de Luanda); quinguana, no Zaire; quioco, no Nordeste de Angola; ronga, em Moçambique e Zimbábue; suaíle, na Tanzânia, Zanzibar e Moçambique; suto, na África do Sul; tonga, em Moçambique e Zimbábue; xona, em Moçambique, Zimbábue e Botsuana; umbundo, em Angola, abaixo do rio Cuanza e na região de Benguela (Lopes, 1998). Todas estas denominações datam de meados do século passado para cá, resultado sobretudo do trabalho de lingüistas e etnólogos, tendendo as etnias a serem reconhecidas pela designação da língua. Em anos recentes, estudos lingüísticos demostraram a sobrevivência no Brasil de elementos originários principalmente do quicongo, quimbundo e umbundo, o que nos dá uma boa pista da superioridade demográfica, entre os bantus no Brasil, dos africanos provenientes do Congo e de Angola, onde estas línguas são faladas. De fato, reminiscências culturais desses grupos são conhecidas entre nós como congo, angola e cabinda, hoje usando-se genericamente o termo angola para todos os bantus, sobretudo quando se trata da designação de religião afro-brasileira de origem banto ou de outra modalidade cultural, como a capoeira, luta marcial afro-brasileira.

Grupos falantes da mesma língua podiam formar na África muitas variantes culturais, às vezes com dialetos próprios e particularidades culturais. Entre os iorubás, por exemplo, além de falarem variantes dialetais, diferentes cidades e aldeias cultuavam divindades específicas, mantinham costumes cerimoniais próprios, tinham músicas distintas e assim por diante. Até o século XVIII, cada grupo iorubá era identificado pela sua cidade, não havendo um nome para designá-los em conjunto. Cada cidade era politicamente autônoma, cada um governada por seu Obá, ou rei, mas uma delas dominava outras, formando uma sociedade mais ampla, defendida pelo poder imperial da cidade dominante. Embora a economia fosse baseada na agricultura, caça e pesca, a população habitava as cidades, das quais Ifé, a cidade sagrada, era considerada o berço dos iorubás e da humanidade. Entre os iorubás o último grande império foi o da cidade de Oió, a que estavam submetidas a maioria das demais cidades. Destas cidades, duas ocupam papel especial na memória da cultura religiosa que se reproduziu no Brasil: Oió, a cidade de Xangô, e Ketu, cidade de Oxóssi, além de Abeokutá, centro de culto a Iemanjá, e Ilexá, a capital da sub-etnia ijexá, de onde são provenientes os cultos a Oxum e Logun-Edé. As inúmeras variantes culturais locais, tanto no caso dos bantus como dos iorubás ou nagôs, não sobreviveram como unidades autônomas e muitas foram totalmente perdida  no Brasil. Diferenças específicas foram apagadas, amalgamando-se em grupos genéricos conhecidos como jejes, nagôs, angola etc.

Nos primeiros séculos do tráfico, chegaram ao Brasil preferencialmente africanos bantus, seguidos mais tarde pelos sudaneses, cujo tráfico se acentuou a partir da queda do império de Oió, destruído pelos fons do Daomé e depois dominados pelos haussás. Sem proteção militar, as diferentes populações iorubás passaram a ser presas fáceis do mercado local de escravos mantido por vizinhos de outras etnias.

Ao longo da história agrícola colonial, o crescimento das atividades agrícolas, correspondeu sempre a um maior afluxo de escravos. Foram as mãos-de-obra dos campos de fumo e cacau da Bahia e Sergipe, além da cana-de-açúcar; no Rio de Janeiro foram destinados aos plantios de cana e mais tarde de café; Em Pernambuco, Alagoas e Paraíba eram indispensáveis aos cultivos de cana e algodão; no Maranhão e Pará trabalharam no algodão; em São Paulo, na cana e café. Em Minas, além da mineração, trabalharam, mais tarde, nas plantações de café, também cultivado no Espírito Santo. Também estavam presentes na agricultura do Rio Grande do Sul e na mineração de Goiás e Mato Grosso. Em todos os lugares foram os responsáveis também pelos serviços domésticos, organizado no complexo casa-grande e senzala. À medida que cresciam as cidades, sobretudo as litorâneas, já na virada para o século XIX, desenvolveu-se um mercado de serviços urbanos desempenhados pelos africanos escravos e baseado numa nova forma de espoliação, em que os escravos ofereciam suas habilidades profissionais a quem delas precisavam, recebendo pagamento em dinheiro, destinado ao senhor do escravo, no todo ou em grande parte. Eram os "escravos de ganho", aos quais se juntavam os negros libertos nas ocupações de carregadores, pequenos mercadores, barqueiros de cabotagem, produtores de víveres, artesãos de todas as artes, amas e empregados domésticos, além de serviços de enfermagem, encarregados de serviços públicos etc. etc. Faziam também parte desta força-de-trabalho urbana os "emancipados", africanos trazidos pelo tráfico ilegal, libertados pelo governo e por ele empregados (Conrad, 1985: 171-186). Com a nova forma de uso da mão escrava, novas maneiras de viver do cativo ganharam corpo, já não sendo necessário seu convívio na propriedade do senhor, nem tendo que se manter a senzala. A escravidão se urbaniza, o escravo ganhou maior liberdade de movimentos, ampliou suas relações sociais e desenvolveu novas formas de sociabilidade.

Sabe-se que o grosso da atividade agrícola e mineradora, implantada havia mais tempo e espalhada por todo o interior rural, foi garantida por escravos de origem banto, enquanto que as atividades urbanas, mais recentes e concentradas nas grandes capitais da costa, estariam mais estreitamente relacionadas aos sudaneses, devido basicamente às mudanças de fluxo da origem do tráfico na África nos diferentes momentos históricos que marcam esta ou aquela atividade econômica no Brasil. De fato, a importação de escravos bantus não foi substituída pela de sudaneses e continuou seu fluxo, embora os provenientes dos portos da chamada Costa dos Escravos ou Golfo da Guiné viessem a ser mais concentrados nas cidades, sobretudo na Bahia. No Rio de Janeiro, por exemplo, a predominância demográfica de escravos bantus sempre se manteve, devido em grande parte às particularidades dos acordos e tratados do tráfico, o que, por exemplo, permitiu aos traficantes portugueses dos últimos tempos comercializar exclusivamente com o Rio de Janeiro os negros que só podiam trazer da costa meridional africana.

Embora cada porto concentrasse preferencialmente as presas das vizinhanças, a necessidade de manter portos de embarque afastados, para driblar a vigilância quando o tráfico começou a ficar ilegal, primeiro em certos segmentos da costa africana, mais tarde em todo o litoral, fez com que partidas de escravos alcançassem os portos depois de percorrer a pé, pelo interior, longos trajetos. Isso complicava a identificação do escravo, pois sua origem através do porto de embarque podia não mais corresponder a sua origem verdadeira. Uma vez em terras brasileiras, a própria política oficial da Coroa, em certos períodos, propiciava o apagamento das origens culturais, não estimulando, com o receio da sublevação, o agrupamento de escravos de mesmas origens, embora em outras épocas buscasse agregá-los para melhor os controlar. Também, como a carga era vendida freqüentemente em mercado aberto peça por peça, era fácil a desagregação e a dispersão dos grupos que eventualmente poderiam ter uma mesma origem, não sendo possível para o africano manter língua e cultura originais, obrigado a viver numa miscelânea lingüística e cultural que, além de tudo, estava submetida pela cultura brasileira em formação, de língua e costumes de tradição portuguesa.

No caso do tráfico dirigido à Bahia, Pierre Verger estabelece quatro períodos:

1º) o ciclo da Guiné durante a segunda metade do século XVI;

 2º) o ciclo de Angola e do Congo no século XVII;

3º) o ciclo da Costa da Mina durante os três primeiros quartos do século XVIII;

4º) 0 ciclo da baía de Benin entre 1770 e 1850, estando incluído aí o período do tráfico clandestino.

A chegada dos daomeanos, chamados jejes no Brasil, deu-se durante os dois últimos períodos, enquanto a dos nagô‑iorubás corresponde sobretudo ao último (Verger, 1987: 10). A chegada relativamente tardia na Bahia urbana de etnias sudanesas, permitiu que, no final do século XIX, velhos africanos ainda pudessem ser reconhecidos por sua etnia ou nação. Nina Rodrigues, em Os africanos no Brasil, nos conta daqueles que ele pode conhecer pessoalmente ou de ouvir falar, remanescentes das nações iorubás, chamados nagôs no Brasil, que reuniam as etnias de Ilorin, Ijexá, Abeokutá (egbás), Lagos, Ketu e Ibadan e Ifé, sendo que os provenientes da região central da iorubalândia (Oyó, Ilorin, Ijaxá) eram quase todos malês ou muçulmanos. Nina Rodrigues também fala dos jejes, trazidos tanto do Daomé como de cidades do litoral, e do reino dos mahis, localizado ao norte do país dos jejes daomeanos; mais os haussás, os tapas, os grúncis e outros. Viviam agrupados com os seus, preservando línguas e costumes, embora falassem todos a língua nagô ou iorubá, língua geral de comunicação dos africanos de todas as origens que viviam em Salvador pelo menos no século XIX.

Nas grandes cidades, onde predominavam os africanos de importação mais recente, especialmente em se tratando de escravos de ganho que viviam aglomerados em habitações coletivas, havia tendência dos negros, fossem eles libertos ou escravos, de se agregarem em função de suas etnias ou nações, vivendo com seus parentes, agregados e também seus escravos, estes em geral da mesma nação do senhor negro. O estudo "Viver e morrer no meio dos seus" de Maria Inês de Oliveira, sobre Salvador no século XIX mostra exatamente isso.

Entre os africanos nascidos no Brasil há mais tempo, entretanto, já poucos falavam sua língua e mantinham costumes originais. No interior e nas cidades para onde a importação de africanos era mais antiga, menos vestígios culturais permaneciam intocados. Os casamentos entre nações, a miscigenação com o branco e com o índio, a adoção da cultura nacional promoveram com intensidade o apagamento das diferentes culturas africanas. Quanto mais distante no tempo estamos, mais intenso terá sido o processo de absorção do africano à cultura brasileira em formação, menos marcas culturais específicas terão sobrado.

Já nos períodos derradeiros da escravidão, novos movimentos populacionais contribuíram para a dispersão cultural. O fim do tráfico africano, por volta de 1850, coincidiu com uma nova etapa de desenvolvimento da economia. A pujança das plantações de café nas províncias de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo continuava a demandar mão-de-obra escrava. Na impossibilidade da importação africana, então totalmente inviabilizada pelas pressões diplomáticas e vigilância naval da Inglaterra, estabeleceu-se durante os trinta anos que levam à Abolição, em 1888, um muito rendoso mercado interno de escravos, vendidos pelas províncias cuja economia declinava e comprados pelos novos ricos plantadores de café do Centro-Sul. Calcula-se em 300 mil o número de escravos assim transferidos de um lugar a outro. Perderam população escrava todas as províncias do Nordeste, do Norte e do Sul (Conrad, 1985: 212, 217). Como caso extremo, o Ceará, assolado pela seca, viu-se obrigado a se desfazer de quase toda a escravaria, pois restava aos senhores vender os escravos para comprar comida para si e suas família, vindo a se tornar o mais branco dos estados brasileiros, não só racialmente, mas também culturalmente: no âmbito das religiões, emblematicamente, é o estado mais católico e menos afro-brasileiro do país.

Esse rearranjo geográfico implicou, evidentemente, num novo emaranhado de origens, identidades e culturas, contribuindo para a formação de um amálgama cultural de caráter, digamos,  nacional, em que o negro vai ficando cada vez mais distante da África e mais perto do Brasil. Ao que tudo indica, a população negra transplantada nesta etapa da escravidão era aquela ocupada na agricultura e menos ligada às ocupações urbanas.

O escravo recebia freqüentemente não a designação de sua verdadeira etnia, mas a do porto de embarque. Por exemplo, chamava‑se indistintamente mina a todos aqueles que passavam pelo forte de Mina, fossem achântis, jejes ou iorubás. Catalogando-se o nome de todos os grupos africanos encontradas nos inventários da escravidão, como fizeram, por exemplo, Beltrán para o México e Escalante para a Colômbia, pode-se verificar que não há quase nenhuma tribo africana que não tenha fornecido seu contingente ao Novo Mundo, embora esses negros não tenham deixado, na maioria das vezes, qualquer traço de suas culturas nativas.

 Inicialmente, no Brasil, os escravos urbanos e os negros livres eram divididos em nações e o governo colonial permitia e incentivava que eles tivessem seus próprios reis e seus governadores, política que visava a evitar a união generalizada dos negros e a possibilidade da sublevação, segundo a velha fórmula que ensina dividir para reinar, política que, segundo Bastide, se mostrou muito útil para os governantes, pois cada conspiração foi denunciada de antemão aos senhores pelos escravos de outras etnias. Especialmente entre os artesãos e outros trabalhadores urbanos, os negros reuniam-se em associações de compatriotas com o fim de celebrar festivamente suas tradições, dissimulando sob máscara católica, suas crenças religiosas.

Houve por toda a América notáveis exemplos dessas organizações ou "nações" admiravelmente bem organizadas, desde os Estados Unidos, onde os negros elegiam, no norte do país, seus governadores, até a Argentina. No Rio da Prata eram quatro as "nações": tonga, mandinga, ardra e congo, as mais importantes subdividindo-se em "províncias". Assim, em Montevidéu, a nação congo subdividia-se em seis províncias: gunga, guarda, angola, munjolo, basundi e boma. No Peru  havia os angola, caravelis, moçambiques, congos, chalas e Terra‑Nova, com suas casas chamadas de "confrarias" ou "cabildos", com seus reis, rainhas, damas de honra, suas orquestras. Os cabildos de Cuba reuniam as nações ganga, lucumi, carabali, congo etc.

No Brasil, a organização dos negros em nações verificava-se em diferentes instituições. No exército os soldados negros formavam quatro batalhões: minas, ardras, angola e crioulos. Na Bahia, por exemplo, a confraria negra católica de Nossa Senhora do Rosário era formada apenas pelos angola, enquanto que os iorubás reuniam-se numa igreja da Cidade Baixa. "Enfim, organizavam-se em associações de lazer, de ajuda mútua, mantendo casas nos subúrbios, onde se escondiam as cerimônias religiosas propriamente africanas e onde se preparavam as revoltas" (Bastide, 1974, p. 13). São muitos os exemplos, por todo o país, das associações de nações de escravos, como a Irmandade do Senhor dos Martírios, fundada em Cachoeira, no Recôncavo, pelos jejes em 1765 (Oliveira, 1999: 70).

Com o fim da escravidão, parece que a população negra, na tentativa de se integrar na sociedade brasileira, não como africanos, mas como brasileiros, teria se desinteressado de suas próprias origens, deixando-as definitivamente para trás, esquecidas, como mais adiante aconteceria, depois de algumas gerações, com o imigrante europeu também desejoso de se tornar brasileiro, como se o passado fosse um entrave a uma nova vida, uma memória ruim, lembrança desnecessária. O Brasil já era então um país de brancos e negros, não se sabe bem de onde vindos, que são apenas brasileiros, como os mulatos, que representam bem essa mistura.

Até o final o século XIX, a identificação através da nação, ainda que esta fosse uma construção brasileira, estava presente nos documentos que se referem a negros, como testamentos, escrituras e relações oficiais. Mas, como enfatiza Bastide, com o fim do tráfico e depois da própria escravidão, as referências às nações dos africanos, enquanto referências de origem étnicas, perderam sua importância e caíram em desuso, passando todos os negros a serem classificados simplesmente como negros, africanos ou de origem africana. As misturas étnicas se generalizaram em todas as partes da América, formando-se o tipo "negro", que apagou todas as origens. Por outro lado a nações, como tradições culturais, foram preservadas na forma de candomblé no Brasil, santeria em Cuba e vodus no Haiti, cada grupo religioso compreendendo variantes rituais autodesignadas com pelos nomes de antigas etnias africanas. Assim, na Bahia, temos os candomblés nagôs ou iorubás: ketu ou queto, ijexá e efã; os bantus: angola, congo e cabinda; os ewe-fons: jejes ou jejes-mahins. Em Pernambuco, os xangôs de nação nagô-egbá e os de nação angola. No Maranhão, o tambor-de-mina das nações mina-jeje e mina-nagô. No Rio Grande do Sul o batuque oió-ijexá, também chamado de batuque de nação. "Isto quer dizer, diz Bastide, que as civilizações se desligaram das etnias que eram suas portadoras, para viverem uma vida própria, podendo mesmo atrair para o seu seio não somente mulatos e mestiços de índios, mas ainda europeus" (Bastide, 1974: 15).

Quando, já na segunda metade do século XX, o próprio candomblé deixou de ser uma religião dos grupos negros para se transformar numa religião universal, isto é, aberta a todos, independentemente de origens raciais, sociais e geográficas, o desligamento da cultura de sua fonte étnica,  fenômeno que Bastide não conheceu, terá se completado definitivamente (Prandi, 1991).

A cultura africana que assim vai se diluindo na formação da cultura nacional correspondem a um vastíssimo elenco de itens que abrangem a língua, a culinária, a música e artes diversas, além de valores sociais, representações míticas e concepções religiosas. Mas, fora do campo religioso, nenhuma das instituições culturais africanas logrou sobreviver. Ao contrário, cada contribuição é o resultado de um longo e lento processo de diluição e apagamento étnico a tal ponto que, diante de um determinado traço cultural, embora podendo reconhecer uma origem africana genérica, ainda assim é difícil, quando não impossível, identificar o povo ou nação de que provém. Tudo é simplesmente África, perdidas as diferenças e especificidades. Mais que isso, os próprios afro-descendentes, por não conhecerem sua própria origem, nem sabendo se seus antepassados eram bantus ou sudaneses, também não podem identificar a origens dos aspectos culturais, como se a cultura brasileira como um todo, ao se apropriar deles, tivesse apagado as fontes.

Estudos  têm permitido, contudo, identificar as fonte do vasto arsenal de étimos africanos que compõem a língua portuguesa no Brasil. Em seu recentemente publicado Dicionário banto do Brasil (1998), Nei Lopes arrola cerca de oito mil vocábulos de origem banta incorporada à língua portuguesa falada no Brasil. São provenientes dos mais diferentes grupos bantus, como se cada etnia desejasse perpetuar-se na língua do novo país, mas na grande maioria a origem das palavras aponta para as línguas quimbundo, umbundo e quicongo, enfim as línguas das nações angola e congo, especialmente angola, que parece representar para o Brasil uma espécie de África síntese. Bem menor é a participação dos sudaneses no vocabulário do brasileiro. Suas palavras incorporadas ao português e já dicionarizadas são particularmente ligadas ao cotidiano do candomblé, seu panteão, aspectos cerimoniais e comidas votivas, como ebó (oferenda), axexê (rito mortuário), bori (sacrifício à cabeça), as comidas acarajé, acaçá, efó, abará, palavras que são em sua maioria iorubás.

Com a formação da sociedade de classes, cada vez mais as organizações de corte estamental e étnico foram perdendo o sentido e aspectos das culturas africanas foram igualmente sendo mais e mais absorvidos pela cultura nacional, que é branca e européia. Embora em muitos aspectos, sobretudo no campo das artes, possamos identificar no final do século XIX e no início do século XX manifestações culturais caracteristicamente negras, sua sobrevivência dependia de sua capacidade de ser absorvida pela cultura branca. É o caso exemplar da música popular brasileira, em que os ritmos e estruturas melódicas de origem africana sobreviveram na medida em que passaram a interessar os compositores brancos ou consumidores da cultura branca. Assim, o lundu negro abria caminho para o choro branco; a música dos candomblé dos negros pobres fornecia a matriz para o samba nacional das classes médias. Em outras palavras, a preservação daquilo que é africano requeria apagar ou disfarçar exatamente a origem e a marca negra, num processo de branqueamento que atingiu todas as áreas, do qual a umbanda é o exemplo emblemático, e que somente foi limitadamente revertido a partir dos anos 60, quando a diferença, o pluralismo cultural e a valorização das origens étnicas passaram a constituir a orientação dos produtores e consumidores culturais, num movimento de âmbito cultural que foi bastante expressivo no Brasil.

Por volta da metade do século XIX, com a presença de escravos, negros libertos e seus descendentes nas grandes cidades, quando a população negra conheceu maiores possibilidades de integração entre si, com maior liberdade de movimento e maior capacidade de organização, uma vez que mesmo o escravo já não estava preso ao domicílio do senhor, podendo agregar-se em residência coletivas concentradas em bairros urbanos onde estava seu mercado de trabalho, vivendo com seus iguais, quando tradições e línguas estavam vivas em razão de chegada recente, criou-se no Brasil o que talvez seja a reconstituição cultural mais bem acabada do negro no Brasil, capaz de preservar-se até os dias de hoje: a religião afro-brasileira.

Nas diferentes grandes cidades do século XIX surgiram grupos que recriavam no Brasil cultos religiosos que reproduziam não somente a religião africana, mas também outros aspectos da sua cultura na África. Os criadores dessas religiões foram negros da nação nagô ou iorubá, especialmente os de tradição de Oyó, Lagos, Ketu, Ijexá e Egbá, e os das nações jeje, sobretudo os mahis e os daomeanos. Floresceram na Bahia, Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Rio Grande do Sul e, secundariamente, no Rio de Janeiro. Embora tenha também surgido e se mantido uma religião equivalente por iniciativa de negros bantus, a modalidade banta lembra muito mais uma adaptação das religiões sudanesas do que propriamente cultos da África meridional, tanto em relação ao panteão de divindades como em função das cerimônias e processos iniciáticos.

A religião negra, que na Bahia se chamou candomblé, em Pernambuco e Alagoas, xangô, no Maranhão, tambor-de-mina e no Rio Grande do Sul, batuque, foi organizada em grupos de "nações", ou "nações de candomblé" (Lima, 1984), sendo que em cada uma delas a nação africana que a identifica é responsável pela maioria dos seus elementos, embora haja grande troca de elementos entre elas, resultado dos contatos entre nações no Brasil e mesmo anteriormente na África. Na Bahia surgiram os candomblés ketu e ijexá e mais recentemente o efã, todos de origem acentuadamente nagô ou iorubá, além de um candomblé de culto aos ancestrais, o candomblé de egungum. Também da Bahia é o candomblé jeje ou jeje-mahi, enquanto que no Maranhão o tambor denominado mina-jeje dependeu mais de tradições dos jejes daomeanos, ali também se criando uma denominação mina-nagô. Em Pernambuco sobreviveu a recriação da nação ebgá, também chamada nagô e no Rio Grande do Sul, as nações iorubanas Oyó e ijexá. Em Alagoas criou-se um culto de nação xambá, igualmente nagô, hoje praticamente extinta. Na Bahia, como em outros lugares, tivemos a formação dos candomblés bantus, com três referências básicas: candomblé angola, congo e cabinda, mas apenas as dimensões da língua ritual e da música parecem ser sua marca de identidade, pois seus deuses são os orixás dos nagôs e seus ritos seguem os dos candomblés nagôs e jejes.

Como disse antes, a religião negra que se refez na Bahia e outros lugares é uma reconstituição não apenas da religião africana, mas de muitos outros aspectos culturais da África original. Tomemos o candomblé ketu, que inclusive serve de modelo para os demais. Primeiro, refez-se no plano da religião a comunidade africana perdida na Diáspora, criando-se através do grupo religioso relações de hierarquia, subordinação e lealdade baseadas nos padrões familiares e de parentesco existentes na África, fazendo-se da família-de-santo, a comunidade de culto, uma espécie de miniatura simbólica da família iorubá.

Os iorubás tradicionais são poligínicos, com família extensa habitando residências coletivas formadas de quartos e apartamentos contíguos, os compounds, cultuando deuses, os orixás, que são particulares para cada família, cidade e região (Fadipe, 1970). O chefe mora com sua mulher principal e os filhos dela nos aposentos principais e as demais esposas moram com seus filhos, habitando cada uma quartos separados. As áreas comuns são reservadas para cozinha, lazer, trabalho artesanal e armazenamento. A família cultua o orixá do chefe masculino, divindade ancestral que ele herda patrilinearmente, e que é o orixá principal de todos o filhos. Cada esposa cultua também o orixá da família de seu pai, que é o segundo orixá de seus filhos. Assim, os irmãos devem culto ao orixá do pai, que é o mesmo para todos, e ao orixá da mãe, que pode ser diferente de acordo com a herança materna. Como os iorubás crêem descender de seus orixás, a origem de cada indivíduo não é necessariamente a mesma. Um compound é assim uma reunião de diferentes cultos, cada um com seus cerimônias, mitos e tabus. Há um deus geral e deuses particulares louvados nas casas das diversas esposas. A família também tem como culto comum a devoção a Exu, orixá  que estabelece a comunicação entre os diferentes planos e personagens deste mundo e do mundo paralelo dos deuses e espíritos. Também se cultuam os orixás que protegem a cidade, em geral orixás da família do rei, os orixás do mercado, centro econômico e de sociabilidade da cidade, e outros que podem ser adotados por livre escolha por cada um. O chefe da família é o chefe do culto do orixá principal, iniciando-se entre membros da família os sacerdotes que devem recebem a divindade em transe ritual durante as grandes celebrações festivas. O mesmo se dá com respeito aos orixás secundários, os das esposas. O culto ao orixá da adivinhação, chamado Orunmilá ou Ifá, é praticado fora do âmbito da família, por uma confraria de sacerdotes chamados babalaôs, encarregados de, através de práticas divinatórias, ler e interpretar o futuro das pessoas, conhecer o desígnio dos deuses, prescrever os sacrifícios propiciatórios aos orixás. A adivinhação do babalaô é praticada através da interpretação de um enorme acervo de mitos (seus instrumentos divinatórios selecionam os mitos a serem interpretados em cada consulta oracular), mitos que ele aprende durante a iniciação e que explicam para o iorubá seu mundo, a vida, a morte, a ação dos deuses e tudo o mais que existe, e que fornecem e inspiram os valores e normas da sociedade iorubana. Uma outra sociedade que envolve toda a cidade, às vezes mais de uma, é a que se dedica ao cultos dos ancestrais fundadores da cidade, os egunguns, culto estritamente masculino, responsável pela administração da justiça no plano das relações comunitárias. A esta organização religiosa de culto aos fundadores e heróis humanos contrapõe-se uma outra, , a sociedade Geledé, que celebra os ancestrais femininos, as grandes mães. A religião do dia-a-dia, de todo modo, é a religião familiar, não se separando religião e família na vida cotidiana.

O candomblé, criação brasileira, estruturou-se como esta família iorubá. O grupo de culto é dirigido por um chefe, masculino ou feminino com autoridade máxima, e o orixá do fundador do grupo é o orixá comum daquela comunidade, para o qual é levantado o templo principal. Templos secundários, denominados casas ou quartos-de-santo são construídos para cada um dos orixás ou famílias de orixás louvados pelo grupo. A hierarquia copia a da família iorubá, devendo os membros mais jovens respeito e submissão aos mais velhos, aos pés dos quais se prostram em cumprimento, como fazem os filhos iorubanos para com os mais velhos e como faz todo iorubá em respeito às autoridades. Supõe-se que os mais jovens devem aprender com os mais velhos, transmitindo-se o conhecimento religioso pela palavra não escrita. A hierarquia agora é regulada não pela idade, mas pelo tempo de iniciação, já que a inclusão na família (religiosa) faz-se por livre adesão e não por nascimento. As mulheres mais velhas, isto é, iniciadas há mais tempo (e no Brasil o sétimo ano de iniciação ganhou o estatuto de ano que marca a senioridade) chamam-se entre si de egbômi, que em iorubá significa "minha irmã mais velha" e que nada mais é que o tratamento que as esposas mais antigas, e por conseguinte mais importantes, do chefe usam entre si. A recém-iniciadas é chamada iaô, ou jovem esposa, noiva, que é como as esposas mais velhas chamam as mais novas. Claro que, com o passar do tempo, essas designações reservadas às mulheres passaram também a ser usadas para os iniciados masculinos. Além das práticas iniciáticas, como a raspagem da cabeça que marca o ingresso das meninas na puberdade, o uso de escarificações indicativas de origem tribal e familiar (os aberês do candomblé), costumes do cotidiano familiar africano foram igualmente incorporados à religião no Brasil como fundamento sagrado que não deve ser mudado: dormir em esteira, comer com a mão, prostrar-se para cumprimentar os mais velhos, manter-se de cabeça baixa na frente de autoridades, dançar descalço etc.

Do governo das cidades o candomblé copiou postos de mando na religião. O conselho do rei de Oyó, cidade de Xangô, inspirou a criação do conselho dos obás ou mogbás em terreiros deste orixá. O general balogun tranformou-se em cargo de alta hierarquia no culto a Ogum. As mulheres encarregadas de administrar o provimento material da corte do rei inspiraram as ialodês dos candomblés. A mulher encarregada de zelar pelo culto a Xangô no palácio do rei de Oyó, e por isso mesmo chamada Ekeji Orixá, que significa a segunda pessoa do orixá, foi certamente o modelo do cargo das equédis, que são as mulheres que não entram em transe e que vestem e dançam com os orixás incorporados em suas sacerdotisas e sacerdotes.

O candomblé que assim se formou no Brasil foi mais que a reconstituição da religião. Não sendo a religião africana separada na sociedade, para que ela fizesse sentido, muitos aspectos da sociedade tiveram que ser reconstituídos, pelo menos simbolicamente, uma vez que no Brasil as estruturas familiares e societárias africanas estavam completamente ausentes, substituídas, mesmo no caso do escravo, pelo padrões ibero-brasileiros. Isso evidentemente implicou muitas acomodações. Com a destruição no Brasil da família africana, perdendo-se para sempre as linhagens e as estruturas de parentesco, a identidade sagrada não pôde mais ser baseada na idéia de que cada ser humano descende de uma divindade através de uma linhagem biológica. Esta herança, baseada na família de sangue, foi substituída por uma concepção mítica das linhagens. Continuou-se a crer que cada indivíduo descende de um orixá, que é considerado seu pai e a quem deve culto, mas isto independe da família biológica e o orixá de cada um só pode ser revelado através do oráculo, que no Brasil passou a ser prerrogativa dos chefes de culto, as mães e os pais-de-santo, que tomaram para si todo o poder de adivinhação, o que provocou o desaparecimento da figura do babalaô, já que este se tornou um sacerdote supérfluo. Mas se manteve a idéia de um segundo orixá regendo o indivíduo, o adjunto ou juntó, que na África era o da mãe biológica e que aqui é identificado também através do oráculo.

Toda esta reconstrução, com as inevitáveis adaptações, recriou no Brasil uma África simbólica que foi, durante pelo menos um século, a mais completa referência cultural para o negro brasileiro. Como instituição agora da sociedade brasileira, funcionou como uma espécie de ilha à qual o negro podia recolher-se periodicamente, num refúgio idílico capaz de atenuar, quem sabe?, as agruras da vida cotidiana na sociedade inclusiva branca. Mas, na medida em que o tráfico cessou, a escravidão chegou ao final e se iniciou o lento e inconcluso processo de integração do negro na sociedade de classes então em formação, o candomblé como reunião de negros originários e descendentes de determinadas etnias ou nações africanas deixou de fazer sentido. A adesão dos negros às diferentes nações de candomblé deixou de ser orientado por sua origem de nação e passa e se constituir numa escolha pessoal, pesando na decisão as simpatias pelo chefe do grupo, o conhecimento e amizade dos adeptos etc. etc. De todo modo, o corte não é mais étnico. Assim como o negro esqueceu sua origem e a língua de seus pais e avós, o candomblé também esqueceu o significado das palavras e a sintaxe das suas línguas sagradas. Embora os cânticos e rezas tenham sido preservados nas línguas originais, modificadas e corrompidas, evidentemente, a cada geração, as diversas línguas do candomblé deixaram de ser línguas de comunicação, para serem línguas rituais intraduzíveis.

Ultrapassada a primeira metade do século XX, a possibilidade de se escolher o candomblé como religião deixa de ser prerrogativa do negro, abrindo-se a religião afro-brasileira para todos os brasileiros de todas as origens étnicas e raciais. A sociedade branca, que já no início do século criara uma versão mais branqueada do candomblé, a umbanda, capturou então, num outro movimento de inclusão, aquela que durante um século tinha sido a religião dos negros. Já estávamos na sociedade de massa e o candomblé seria o grande reservatório da cultura brasileira mais próxima da África.

É no final anos 60 e começo dos 70 que se inicia junto às classes médias a recuperação das nossa raízes culturais, reflexo de um movimento cultural muito mais amplo, que, nos Estados Unidos e na Europa, e daí para o Brasil, questionava as verdades da civilização ocidental, o conhecimento universitário tradicional, a superioridade dos padrões burgueses vigentes, os valores estéticos europeus, voltando-se para as culturas tradicionais, sobretudo as do Oriente, e buscando novos sentidos nas velhas subjetividades, em esquecidos valores e escondidas formas de expressões. No Brasil verificou-se um grande retorno à Bahia, com a redescoberta de seus ritmos, seus sabores culinários e toda a cultura dos candomblés. As artes brasileiras em geral (música, cinema, teatro, dança, literatura, artes plásticas) ganham novas referências, o turismo das classes médias do Sudeste elegeu novo fluxo em direção a Salvador e demais pontos do Nordeste (Prandi, 1991). O candomblé se esparramou muito rapidamente por todo o país, deixando de ser um religião exclusiva de negros, a música baiana de inspiração negra fez-se consumo nacional, a comida baiana, nada mais que comida votiva dos terreiros, foi para todas a mesas, e assim por diante.

Para tal anseio em beber nas raízes, a Bahia acabou por não bastar. Numa segunda etapa, os brasileiros, agora de todas as origens, voltaram-se em direção à África contemporânea em busca de fontes supostamente mais originais que aquelas preservadas no Brasil pelos descendentes dos escravos, originando-se um movimento que chamei de africanização do candomblé, que nada mais expressa que a valorização das fontes africanas exatamente no momento em que ao candomblé adere uma camada de brancos escolarizados (Prandi, 1991; 1996), isto é, quando se faz universal, constituindo-se numa cultura para todos.

Se aspectos de origem africana compunham a cultura brasileira nas mais diversas áreas, com o movimento dos anos 60 e 70 ocorreu todo um redimensionamento da herança negra, com o qual aquilo que antes era tratado como exótico, diferente, primitivo, passou ser incorporado como habitual, próximo, contemporâneo. A própria música popular incorpora ao velho e sucessivamente branqueado samba novas batidas, mais próximas da percussão dos terreiros de candomblé. As escolas de samba do carnaval não se cansam de fazer desfilar os orixás na avenida. A televisão, na notícia e na ficção, não consegue deixar de lado referências constantes aos deuses dos terreiros, ao jogo de búzios, aos falsos e autênticos pais e mães-de-santo. A cultura de uma minoria agora já é consumo de todos.

Mas o negro, obrigado a incorporar-se numa cultura nacional, européia, branca e cristã, sem o que não era possível sobreviver — e o sincretismo católico das religiões afro-brasileiras é a demonstração emblemática dessa obrigatoriedade de ser brasileiro e por conseguinte católico, mesmo quando se é africano e se cultuam os orixás, voduns e inquices — pois bem, o negro esqueceu sua origem. Já não é capaz de saber de onde vieram seus ancestrais, se eram dessa ou daquela tribo ou cidade, que língua falavam, nem mesmo sabe se eram bantus ou sudaneses.

A superioridade numérica dos negros nagôs na Salvador do século XIX transformou sua língua, o iorubá, numa língua comum dos negros escravos e libertos das mais diferentes origens étnicas que conviviam na cidade. Quando os diferentes grupos organizaram sua religião na Bahia, foram candomblés nagôs, com muitas contribuições rituais dos jejes, que melhor conseguiram se impor como modelo de culto, de tal modo que os seus deuses, os orixás, acabaram ganhando um destaque, primeiro local e depois nacional, capaz de embaciar a presença dos voduns dos jejes e inquices dos bantus. Enquanto os orixás passaram a ser reconhecidos como as autênticas divindades africanas, sobretudo com o surgimento da umbanda, que os disseminou por todo o país, os voduns ficaram limitados a uns poucos templos de Salvador e cidades do Recôncavo e completamente escondidos do resto do país nos templos do Maranhão. Os inquices bantus desde longa data haviam sido substituídos pelos orixás e encantados caboclos. Como se tudo que é negro remetesse aos povos nagôs, como se todos os deuses africanos fossem orixás.

O processo de elaboração desse passado mítico vai beber nas próprias tradições correntes que brotam das instituições religiosas negras mais presentes no cenário cultural do país, e a identidade define-se a partir de uma origem idealizada, que o poeta adota como sendo a sua. A reconstituição do passado que orienta a construção da identidade se faz assim a partir da cultura brasileira e não da verdadeira e perdida origem étnica, familiar e, em última instância, racial.

Mesmo quando o negro se expressa para afirmar a sua negritude, a sua condição africana, não resta a ele fazê-lo senão como brasileiro. Ainda que o passado ancestral perdido seja a África pluri-étnica, multi-cultural, o passado recuperável é aquele que o Brasil logrou incorporar na construção de uma nova civilização, passado que só pode ser reinventado. Entre o Brasil contemporâneo e a velha África, assim como a antiga Europa e as perdidas civilizações indígenas, situa-se a nossa própria história, que nos impede ou auxilia no reencontro do nosso ponto de partida, nos meandros da civilização que ela mesma engendrou.

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